quarta-feira, junho 28, 2006

MISTÉRIO DA NOITE

Júlio César Pimenta


Não é fácil o dia dela. É quem abre as portas e quase sempre é a última a sair do bar de Nazaré.

Pelas 9:00h da manhã, chega e já vai direto à vassoura de piaçaba. Trabalho pouco, pois que, de véspera, já deixou quase tudo limpo e arrumado. Apenas retoques finais de vestígios deixados pelos últimos fregueses da noite anterior. Um guardanapo jogado debaixo de uma mesa, uma ponta de cigarro apagada na sola do sapato do mal-educado.

Coloca mesas e cadeiras de plástico para fora, na calçada, e vai para a cozinha preparar o feijão já devidamente catado na tarde anterior e deixado de molho, na água, para amolecer.

Prepara o tempero do feijão e o põe no fogo, já temperado. Depois, águas para ferver, para o arroz e macarrão de todo dia. Retira as carnes do frízer e aí começam a chegar os clientes de ponto, para uma chamada ou duas, de cachaça.

Lá pelas 11:00h é que começam a aparecer os chegados à cerveja e os diaristas do almoço. Peixe, carneiro, porco, carne-de-sol, costela. É o cardápio de todo dia, só diferenciado no sábado, dia de fava e de expediente menor.

Morando na Zona Norte, logo Nazaré apercebeu-se de que ninguém ia importar-se com suas dificuldades de transporte, esticando saideiras noite adentro, fazendo-a correr riscos de sujeitar-se a corujões nem sempre vindos.

Até que determinou horário para fechamento: 22:00h.

A turma não deixou por menos. Logo batizou o estabelecimento de “Fecha às 10”.

Nazaré, mais preocupada com seus próprios problemas do que com as queixas dos recalcitrantes, nem era com ela. E manteve o seu horário de funcionamento, reduzido, aos sábados, para as 5:00h da tarde.

Só na terça-feira, o horário muda. Por conta de um Dia da Poesia caído numa terça-feira de Lua Cheia e muita comemoração pelas adjacências do Beco, a turma preparou uma performance poética com show final de Cida Airam para as calçadas de Nazaré e a festa não deu certo: era noite de reunião da Maçonaria, no andar de cima, e os bodes ficaram impossibilitados de qualquer discussão sobre assuntos em pauta, dada a algazarra que faziam os poetas lá embaixo.

- Dona Maria!

Nazaré já sabia. Era o “chefe deles” querendo pôr fim à festa dos poetas.

Confusão armada, ameaça de não renovar o contrato de locação do imóvel, que a eles pertence, Nazaré fica doida, sem saber o que será da vida sem os seus de todo dia.

Nada que um bom discurso, ampliado para que o mundo, inclusive o lá de cima, ouvisse e não resolvesse.

- Intolerância!

Aquilo era um ato de intolerância e tolerância é palavra-chave para todo bom maçon.

- Tá bom. Cida canta, se encerra a festa e a pendenga está resolvida.

No outro dia, a sentença: às terças, a partir das 19:00h, quando começam a chegar os maçons para a reunião semanal, bar fechadinho da silva para a tranqüilidade de todos: fuzuê etílico mantido, mas trégua às terças, após as 19:00h.

A conversa, porém, não é sobre Nazaré ou Dona Maria, para o vizinhos, mas sobre Tásia, a personagem protagonista principal desta crônica.

É que, apesar da labuta, do fogão e temperaturas quentes do ambiente, o suor a escorrer-lhe pelo corpo por muitos desejado, seios fartos e quase sempre soltos, sobre malha a torneá-los, Tásia não descuida da vaidade e procura manter-se em forma para mostrar-se aos admiradores.

O ruim da história é quando chega a hora de lavar o banheiro e tomar o banho. Ruim para os que estão nas mesas, pois, para ela, essa é a hora sagrada e sua, só sua, dane-se Nazaré, seu Milton, o cliente mais estribado, a moça donzela a trancar-se em cólicas urinárias.

Segurem todos suas necessidades, porque, no mínimo, serão 80 minutos de porta fechada. Sem ter para ninguém.

A hora preferencial é a de começo de movimentação de final de tarde, clientela chegando, mas muitos já ali, mesas cheias de cerveja e bexigas também, apertadas, à espera do surgimento da divina no salão, cheirosa como nenhuma outra, a mais cheirosa entre qualquer dondoca vinda do mais caro dos caros salões de beleza espalhados pela cidade.

Cheirosa e sorridente.

É como se fosse a senha para os mistérios da noite.

Ela fica por ali, atendendo os últimos pedidos de cozinha, mas já não é mais a mesma. Até arrisca a piaçaba meio disfarçadamente, mas sua hora chegou. Fica até o fechamento do bar, mas é outra. Completamente outra.

O que será de sua noite é o maior mistério que o estabelecimento não guarda, pois estará fechado e ela no mundo.

quarta-feira, junho 21, 2006

O ELIXIR DA VIDA

Orf


Nossa gastronomia morta

Aulas pela manhã e nada para fazer à tarde, porque estudar mesmo só em véspera de prova, e, assim mesmo, de cara amarrada, revolta toda da vida com aquela obrigação inquisitorial de conhecimentos.

Adolescência chegando, o melhor programa era tomar rumo da Cidade Alta para assistir uma chanchada no Cine Rio Grande. Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade. Era o máximo, todo o reino da Atlântida aos nossos olhos!

Melhor ainda era o pós-filme no canteiro que separava as duas pistas de rolamento da avenida Deodoro da Fonseca, numas biroscas de madeira onde se vendia caldo de cana com pão doce e cachorro-quente de carne-moída e vinagrete, entre duas fatias de pão francês.

Ali, servia-se o melhor elixir da vida: o refresco de mangaba, fraquinho, que delícia!

A combinação das duas preciosidades, o nosso cachorro-quente e o refresco de mangaba, era tudo: a receita gastronômica mais simples e saborosa da cidade. Nem com Crush, aquela combinação perdia parada. Nem com refresco de cajá.
Dava nem para lembrar os decotes e coxas das vedetes nos musicais de enredos bestas.

Para trás, havia ficado o compra-e-vende e o troca-troca de revistas em quadrinhos das manhãs dominicais nas calçadas do Cinema Rex. Os seriados e o filme do dia.

Tarzan, o Zorro da espada e do pançudo sargento Garcia, filmes de piratas atraíam multidões de meninos às casas de projeção da cidade. Casas cheias também em vésperas de Semana Santa, com 'Marcelino, Pão e Vinho' ou algum épico bíblico. Rio Grande, Rex, Nordeste, Poti, São Luís e São Pedro, o dito pulguinha, coitado, eram os cinemas da cidade.

Se alguém queria namorar alguém, convite para assistir um filme era fatal. Era a senha para o sim, se aceito. E podia reservar dinheiro para a compra do drops Dulcora.

Depois, o cachorro-quente ganhou salsicha e pão especial e 'evoluiu' para hot dog, ficou sem graça, entrou para a família dos hambúrgueres importados e os acompanhamentos passaram a ser batata-palha, ketchup e maionese, mostarda e Coca-Cola.

Os quiosquezinhos do canteiro central próximos ao Cinema Rio Grande foram mais tarde demolidos e deles só restou a saudade dos doces e deliciosos refrescos de mangaba. Quem perdeu, perdeu. Nunca vai se deliciar da mais simples e apetitosa iguaria de rua do cardápio natalense de antanho.

Quem muito procurar os sabores daquela época pode até ser que ainda encontre, em algum ponto perdido, um caldo de cana com pão-doce.

Nem isso, porém, também de doce e deliciosa combinação de sabores, vai substituir o prazer das papilas gustativas diante das fatias de pão com carne-moída e vinagrete, o nosso legítimo cachorro-quente, também servido nos jogos do velho Estádio Juvenal Lamartine, acompanhado do refresco de mangaba fraquinho das biroscas do canteiro central da avenida Deodoro.